Ou Laura e os Octagenários
Ontem fui à Royal Opera House, assistir Simon Boccanegra. Foi minha primeira ópera italiana. Vai, concordo, não deve ser das mais empolgantes, mas achei legal. Na verdade o que interessa é todo o esquema em si, comprar ingresso, ir ao teatro, ver as outras pessoas (a fauna humana, o zoológico), etc. Isso é que é divertido.
Bom, compramos o ingresso uma semana antes, o mais barato de todos: custou 7 libras cada, e dava direito a ficar em pé. Não foi idéia minha, foi idéia da minha roommate (ela tem 50 anos, se ela aguenta eu tenho de aguentar, né). Pensei, "o que eu perco com isso?", "nada mesmo", respondi a mim mesma, e resolvi testar a experiência de ficar 2 horas e pouco em pé ouvindo árias (penso que deve ser uma tortura chinesa para algumas pessoas).
Saí direto do banco, um pouco mais cedo que o de costume, às 6:45 da tarde. Peguei o metrô e cheguei com folga às 7:15. Elas já haviam entrado, minha roommate e sua amiga, e deixaram meu ingresso na bilheteria. Peguei-o e me dirigi ao local, via elevador. Cheguei ao "assento" e não as encontrei, mas faltavam ainda 5 minutos e pensei que deveriam estar tomando um café ou coisa do gênero.
Estava quente. "Cadê o ar condicionado, esse povo acha que porque estamos nas altas latitudes não precisamos de ar condicionado em maio?". Tirei o paletó do terno e o casaco e deixei-os em uma barra logo atrás do meu "assento". Estava arrumando as coisas, pegando os óculos, guardando o ingresso na bolsa, quando de repente me chega uma garota quase que correndo e me pergunta assim do nada, out of the blue:
- Você está sozinha?
- Estou (Estava, não estava? Não havia ninguém ao meu lado).
- Meu amigo não veio, tenho aqui um ingresso, é de graça, você não quer sentar na cadeira? É bem melhor ver a ópera sentada, né?
- Tá bom, aceito. Minhas amigas virão mas eu as encontro mais tarde.
E lá vou eu serelepe da vida atrás da garota, tivemos que escalar algumas cadeiras pois o detour seria muito grande, e a casa estava se enchendo. Antes, porém, vi as duas chegando e disse um rápido "meu dia de sorte, vou me sentar!".
Comprei um ingresso de 7 libras, sentei em uma cadeira de 30 libras. Boa matemática.
Enquanto isso, o teatro se encheu completamente. A idade média da platéia deveria ser de 60 anos aproximadamente. Depois tenho que perguntar à minha roommate se inglês velho ganha ingresso de graça ou paga meia como no Brasil. Sei que andam de metrô de graça - de graça não, um usuário como eu paga a passagem deles.
No meio da ópera, um dos idosos atrás de mim começa a roncar. Talvez a octagenária, talvez o velhote de setenta-e-lá-vai-fumaça. Pensei, "deixa pra lá, não vou criar caso com velho inglês". Já foi o tempo que me incomodava demais com isso.
Durante o intervalo, resolvi não sair junto com a multidão, preferi ficar no assento. Detesto multidões. Elas andam vagarosamente e eu estou sempre com pressa. Às vezes nem sei o motivo da pressa. Minha mãe sempre me pergunta se é pressa de morrer.
Foi aí que ouvi a estória da Laura. Um sujeito em uma das laterais também ficou em seu assento, fazendo ligações telefônicas em seu celular. Depois de ficar todo o primeiro ato sentada, resolvi ficar de pé no intervalo, e me encostei em uma das pilastras para melhor admirar o teatro - que é bem bonito, por sinal. Sem querer, comecei a prestar atenção no papo dele.
Ele dizia a Laura para que ela se acalmasse. Que continuasse a trabalhar como se nada tivesse acontecido e mantivesse a compostura. "Onde a Laura trabalha? O que faz a Laura?" Que ela fosse ao chefe dela e contasse tudo. "Tudo o quê?" Que ela não podia proteger seus colegas, mesmo que fossem amigos. Em grandes corporações o roubo é uma coisa muito séria. "Roubo! Oh começa a ficar interessante. Quem sabe a Laura não trabalha em um grande banco de investimento e o pessoal está desviando dinheiro, ou estão fazendo alguma armação do gênero?" Ele disse mais algumas palavras de conforto à Laura, que devia ser jovem - ele era um cara de quarenta para cima - e desligou. Mas imediatamente ligou para outra pessoa e começou a narrar o caso da Laura. Contou tudo isso aí acima, e que esse seria um teste bem importante na vida profissional da Laura, que se ela aprendesse com esse evento já seria um ganho. "Eu ainda não sei o que a Laura fez ou deixou de fazer, dá para contar?" Pois alguém no trabalho da Laura roubou 50 libras e estavam botando a culpa nela. Você vê, a pior injustiça do mundo é ser acusado de algo que não se fez, e a Laura estava consternada com esse fato.
Tive de me afastar nessa hora para não dar muito na cara que estava ouvindo a conversa dele. E concordei, sim, a pior injustiça do mundo é ser acusado de algo que não se fez. Divaguei, pensei com meus botões. Se você faz algo errado e é pego, não é das coisas mais agradáveis, mas você sempre sabe o risco que está correndo. Está preparado para o fato. Já se não faz nada e alguém te acusa...
O segundo ato começou e alguém velho na fileira de trás começou a roncar novamente. "Por que não ficam em casa dormindo e insistem em vir ao teatro a essa hora? Não é hora de octagenários estarem na rua, têm que vir a matinées". Mas o pai ou avô da minha benfeitora cutucou a pessoa de trás e disse um rápido "desculpa, mas você está roncando". Não ouvimos mais roncos até o final da peça.
E peguei o metrô e vim de volta à casa. Não, não encontrei as duas no intervalo e depois não as vi mais. Ou desistiram, ou arrumaram uma cadeira vazia. Duvido dessa última hipótese, o teatro estava lotado. Deve ser mesmo muito duro assistir a mais de 2 horas de árias em pé. Um teste árduo para qualquer cristão em sã consciência.
Decidi que nunca mais comprarei esses ingressos a 7 libras.